chamei minha eu do passado para tomar um cafΓ©. #11
You can drive all night Looking for the answers in the pouring rain You wanna find peace of mind Looking for the answer.
16 de fevereiro de 2025
Querida alma dilacerada,
Me lembrei de vocΓͺ quando a vi sua foto na minha sua nossa identidade, senti um calafrio que percorreu minha espinha como um gelo na pele quente. Sua imagem estava ali, eternizada, e sua letra assinava o seu meu nosso nome.
Eu lembrei de vocΓͺ depois de encontrar, na minha sua nossa bagunΓ§a particular, o seu boletim do 8* ano. Suas notas caΓram e vocΓͺ ficou de recuperaΓ§Γ£o pela primeira vez. Foi em matemΓ‘tica (mas me ouvi dizer que a professora nΓ£o exatamente compreensiva, se preferir, pode chamar de toxica. Quem sabe?! talvez essa seja a principal razΓ£o por trΓ‘s de suas notas [nΓ³s duas sabemos que nΓ£o]).
Lembrei-me de seu poema, com sua escrita tremida, cheia de raiva e sangue, uma ira que subia em ondas tΓ£o altas que nΓ£o conseguia mais distinguir onde terminava o mundo e onde comeΓ§ava sua dor. O poema, sim, ele gritava. Gritava de uma forma que as palavras nunca poderiam realmente capturar. Seu sangue nΓ£o eram mais denso; era apenas a liquidez que escapava de um coraΓ§Γ£o apodrecido. ensurdecedor. barulhento. incΓ΄modo. seus olhos ansiavam por lΓ‘grimas e vocΓͺ por um fim. um ponto final (.). simples & rΓ‘pido. e mesmo que fosse lento ou atΓ© mesmo complicado, vocΓͺ aguentaria, afinal jΓ‘ passou por coisa pior (o que era mais um pouco de sangue, quando suas paredes jΓ‘ foram pintadas de vermelho?).
Era estranho ver uma estranha tΓ£o conhecida depois de me olhar no espelho. O espelho, esse traidor, nΓ£o reflete nada alΓ©m do que jΓ‘ sabemos, mas lΓ‘, no fundo, fica aquela sensaΓ§Γ£o estranha de que nada Γ© o que parece. E vocΓͺ ainda estΓ‘ lΓ‘. Mas vocΓͺ sempre esteve. Em cada pedaΓ§o da minha solidΓ£o, nos fragmentos da minha alma que vocΓͺ ainda nΓ£o viu, mas que estava constantemente moldando, sem nunca pedir permissΓ£o. Era como encontrar uma amiga do jardim de infΓ’ncia. peculiar. desconfortΓ‘vel. cheio de conversas que odiamos conversar. mas. ainda sim. familiar.
Normalmente vocΓͺ invade minhas memΓ³rias passadas e no mΓ‘ximo me faz lembrΓ‘-las quando estou finalmente bem (eu talvez nΓ£o mereΓ§a).
~maldiΓ§Γ£o que sempre assombra.
Talvez vocΓͺ sΓ³ esteja com saudade. Eu entendo, normalmente era vocΓͺ que tinha posse dessa alma desalmada. & . vocΓͺ sempre odiou ser excluΓda.
Pensando nisso te chamei para um cafΓ©.
nΓ³s duas odiamos cafΓ©.
VocΓͺ chegou como um sopro frio e perturbador em um verΓ£o caloroso, daqueles que sufocam mais do que qualquer grito. NΓ£o me surpreendi. O que Γ© a surpresa quando jΓ‘ sabemos o que virΓ‘?
O cabelo curto e denso, as mechas descoloridas, como se mudar a aparΓͺncia pudesse reescrever quem vocΓͺ era β & tanto odiava ser. Os acessΓ³rios de prata reluziam contra sua pele pΓ‘lida, quase como pequenos pedaΓ§os de lua grudados em vocΓͺ. O delineado, traΓ§ado Γ s pressas com tinta guache, escorria um pouco nos cantos, tΓ£o torto quanto o mundo que via. As roupas largas e escuras pareciam engolir sua silhueta, como se tentassem fazer vocΓͺ desaparecer.
VocΓͺ queria se diluir nesse mar de desespero, como se isso fosse a ΓΊnica forma de escapar, de se dissolver. Mas nΓ£o havia onde escapar. NΓ£o havia.
VocΓͺ nΓ£o queria estar ali. odiava sair do quarto β sua presenΓ§a aqui era uma surpresa, um milagre doloroso. Odiava se esforΓ§ar, mal conseguia ter forΓ§as para escovar os dentes (nojento Γ© sentir nojo de si).
Havia algo na sua expressΓ£o franzida, nos olhos pesados e distantes, que gritava, sem emitir som, pedindo silΓͺncio. O cansaΓ§o desenhava sombras em seu rosto, mas eu via alΓ©m. Eu sabia que aquele sorriso irΓ΄nico, aquele que vocΓͺ usava para se proteger, para se enganar de que ainda restava algo de vocΓͺ ali, aquela postura desafiadora, eram sΓ³ a mΓ‘scara de um palhaΓ§o cansado de entreter o prΓ³prio sofrimento. Mas o que mais me assombrava era a apatia β essa terrΓvel falta de qualquer reaΓ§Γ£o. Como se, no fundo, jΓ‘ nΓ£o houvesse mais espaΓ§o para o choque, nem para a dor. VocΓͺ se afundava cada vez mais em si mesma, e nΓ£o sabia o que fazer com o que restava de sua prΓ³pria carne. O mundo havia perdido o brilho para vocΓͺ. Morrer jΓ‘ nΓ£o parecia um monstro tΓ£o grande β o fim se tornara um sussurro familiar. E vocΓͺ, sem querer, parecia atrair a tragΓ©dia como um ΓmΓ£ esquecido em meio da tempestade de facas metΓ‘licas.
VocΓͺ foi grossa, rΓspida, cortante, mesmo que ainda tivesse forΓ§as para sorrir para o garΓ§om β como se isso provasse que ainda era alguΓ©m, que ainda havia algo de humano em vocΓͺ. Odiou responder minhas perguntas, odiou estar sentada ali, odiou a prΓ³pria voz quebrando o silΓͺncio. VocΓͺ era afiada, uma lΓ’mina contra a prΓ³pria pele, um fio de faca pressionado contra a garganta. Uma amargura familiar. Seu pior lado reinava cada vez que a ansiedade se transformava em um dilΓΊvio de lΓ‘grimas, ofegos curtos, falta de ar. VocΓͺ sentia a conformidade mΓ³rbida de morrer, e as sombras ao seu redor nΓ£o eram apenas metΓ‘foras β eram monstros esculpidos pelo seu prΓ³prio cansaΓ§o, grotescos e inevitΓ‘veis. Suas pernas eram inquietas igual as minhas.
Eu era a ΓΊnica que podia te entender ali. O ΓΊnico olhar que reconhecia a ruΓna por trΓ‘s da fachada, que sabia o que era carregar esse peso esmagador desde a infΓ’ncia. Como alguΓ©m poderia compreender o que era comeΓ§ar a se odiar com oito anos? Como poderiam saber o que era crescer com a certeza de que seu prΓ³prio corpo era um erro, um projeto malfeito, um edifΓcio condenado? Seus ossos falhavam na ΓΊnica funΓ§Γ£o que deveriam cumprir, dobrando-se contra a vontade, se tornando um lembrete constante da sua insuficiΓͺncia. VocΓͺ sentia que nΓ£o era capaz de se sustentar, como se houvesse algo podre dentro de vocΓͺ, como se estivesse sempre Γ beira do colapso. (Nem disso vocΓͺ era capaz?)
Respirar era sufocante. Se afogar era delirante. Se ser era demais.
Os pulmΓ΅es falhavam, ardendo como se o prΓ³prio ar fosse lΓ’minas afiadas. cortantes. sanguinΓ‘rias. O corpo tremia. chacoalhava. em uma danΓ§a grotesca. hedionda. desagradΓ‘vel. perturbadora. Os olhos embaΓ§avam, incapazes de suportar o peso esmagador da realidade. Lutavam para nΓ£o enxergar, pela primeira vez, ameaΓ§avam desistir. O peito arfava, cada ofego mais curto, mais desesperado.
Seus pensamentos, implacΓ‘veis, projetavam um filme cruel, obrigando-a a assistir cada cena repetidas & repetidas vezes. As pernas vacilavam, negavam-se a sustentΓ‘-la. E a morte... jΓ‘ parecia conformada. com hora e data marcada.
Eu sabia que vocΓͺ odiava a casa que foi dada a vocΓͺ, mas era confortΓ‘vel, e o conforto, mesmo que sombrio e sufocante, sempre se aninha nas almas cansadas. O ser humano, quando empoleirado Γ beira do abismo, aprende a amar o peso que o mantΓ©m preso Γ terra, mesmo que esse peso seja o prΓ³prio cansaΓ§o de existir.
Quando vocΓͺ se levantou e foi embora antes que eu pudesse terminar de soltar minhas palavras, eu te observei ir, nΓ£o me surpreendendo. Era o que vocΓͺ sabia fazer de melhor: fugir.
VocΓͺ sabia fugir. Eu tambΓ©m. Mas a nossa fuga nunca fugia do que nos fazia procurar uma verdadeira fuga. Eu fiz o mesmo, saΓ antes que as palavras se estagnassem no ar, antes que o silΓͺncio fosse algo que doΓa mais do que qualquer resposta. mas eu nΓ£o interrompi ninguΓ©m.
~vocΓͺ me SE deixou. de novo.
Dessa vez, o silΓͺncio ficou impregnado no meu corpo como um vestido apertado, como uma segunda pele que me rasgava por dentro. Eu me calei, nΓ£o porque tinha algo a dizer, mas porque em algum lugar profundo demais para ser tocado, sabia que nΓ£o havia mais nada a ser dito. Nem palavras, nem promessas vazias. Nada.
A noite se estendeu, pesada, e, enquanto eu caminhava pelas ruas desertas, o vazio se aninhava em meu peito como um animal faminto. Porque, ao contrΓ‘rio do que eu gostaria de acreditar, sua ausΓͺncia nΓ£o era uma ausΓͺncia qualquer. Ela estava ali, pairando, rodeando-me como uma sombra que nΓ£o podia ser apagada. Eu sabia que vocΓͺ ainda estava aqui, mesmo depois de partir. VocΓͺ estava nas paredes, no ar, nas sombras que eu enxergava entre os carros que passavam apressados, nas ruas que gritavam seu nome som. VocΓͺ ainda estava ali, porque nunca se foi de verdade. Apenas foi embora e deixou-se para trΓ‘s.
Falar com o espelho? Era entediante, eu sabia. Uma tortura. O espelho, como o mundo, nΓ£o tem mais nada a oferecer quando se olha para ele com olhos cansados, olhos que jΓ‘ viram todas as possibilidades de dor e de medo, e ainda assim continuam aqui, procurando algo que nunca encontraram. SΓ³ reflete aquilo que somos incapazes de esconder. Ele nΓ£o tem misericΓ³rdia. E, como vocΓͺ, ele me conhece mais do que eu gostaria de admitir. Eu me calei nΓ£o por escolha, mas por necessidade. Porque jΓ‘ nΓ£o havia palavras, nem promessas. SΓ³ o eco do que um dia foi e do que, talvez, nunca tenha sido. atΓ© quando?
Olhando, percebi que nΓ£o erΓ‘mos tΓ£o diferentes. Nenhuma de nΓ³s conseguimos ficar por muito tempo.
Nem tive tempo de te entregar uma melodia, a mesma que eu fiz com nossas cordas bambas da garganta.
Eu te amo. E odeio ao mesmo tempo.
Com saudade,
JΓΊlia Castro
que lindo, e que estΓ©tica linda juro